A humanidade tem colecionado uma série de traumas
ao longo de sua tortuosa história de glórias e desastres, de avanços e
atrocidades. E em meio a esse (infelizmente) vasto elenco, a Segunda Guerra
Mundial aparece, sem dúvidas, como um dos mais significativos traumas pelos
quais passamos, deixando em nossa história uma ferida que insiste em não se
curar. Foi com a Segunda Guerra que nos demos conta da real medida da crueldade
humana. Foi com ela que aprendemos que a palavra “limite” é algo inalcançável para
as mentes doentias.
É lógico que, por seu tamanho e repercussão, pelo
fato de já contarmos na época com equipamentos que possibilitavam uma captura
real e precisa dos acontecimentos, a Segunda Grande Guerra é também um dos capítulos
da História humana que mais gerou produções, sejam elas de cunho informativo,
sejam de cunho artístico. Filmes, seriados, poemas, romances, pinturas, peças
de teatro, músicas, tudo o que o engenho humano é capaz de produzir já esteve,
em um momento ou outro, em maior ou menor medida, voltado para o grande conflito.
Mas também não deixa de ser curioso: por mais que
tratemos de tão trágico episódio a partir dos mais diversos pontos de vista,
por mais que já tenhamos nos debruçado sobre seus fatos, personagens e datas,
quer sob o ponto de vista do estudo e da informação, quer pelo simples
interesse de fruir uma obra de arte, parecemos cada vez mais distantes das
lições que a guerra nos deixou. Parece que o período de paz praticamente
absoluta experimentado pelo ocidente desde fins do século XX e os vários avanços
tecnológicos conquistados nas últimas décadas nos deram uma percepção
equivocada sobre os rumos da humanidade. Entramos numa fase de grande otimismo,
com muita esperança projetada no futuro... mas, e o passado? Lembrar de nossa
história é fundamental não apenas para que entendamos os avanços que nos
trouxeram até aqui, mas também para que tenhamos em mente os erros que não
queremos nem devemos repetir.
E Umberto Eco nos convida (aliás, nos incita) a lembrar.
Em A misteriosa chama da rainha Loana, romance ilustrado que traz a já
conhecida marca de erudição que seu autor imprimiu em muitas de suas obras, Eco
nos mostra a importância da memória e da compreensão do passado para que
entendamos o presente e possamos imaginar um futuro (“só quando o passado nos
vem à mente é que podemos antecipar o que virá”, p. 41).
O enredo do livro é relativamente simples: nele,
somos apresentados a um abastado comerciante de livros que, após um acidente,
perde a memória biográfica e precisa reaprender tudo a respeito dos sessenta
anos que vivera até ali (“E o senhor, como se chama?” “Espere, está na ponta da
língua”, p. 9). Giambattista Bodoni, o Yambo, precisa aprender a enfrentar o
vazio que se coloca diante de si, pois a não ser aquilo que diz respeito à
memória coletiva e, principalmente, aquilo lera nos livros (lembranças estas que
não foram afetadas), todas as sensações, todos os espaços, todas as relações e
acontecimentos que vivenciara em sua vida pessoal têm que ser redescobertos. Mas,
por onde começar? O que é o passado para aquele que, dentro de sua compreensão
atual, não o viveu?
São esses os
problemas que Eco nos apresenta em seu romance, originalmente publicado em 2004
e cuja edição brasileira veio a público em 2005, pela editora Record. Todavia,
o leitor pode se perguntar como um romance escrito no início do século XXI pode
ter o seu quinhão de originalidade, uma vez que trata, entre outros temas,
justamente da Segunda Guerra Mundial, que já rendeu tantas obras. E mais: como
o tema da perda de memória, também já tão explorado, pode aparecer em tal
romance sem que ele caia na mera exploração enfadonha de um terreno já tantas
vezes visitado?
Eco nos coloca diante da resposta com uma
habilidade incrível. O essencial era justamente unir as duas coisas. Temos aqui
um livro que não parece, a princípio, ter o objetivo de tratar da Segunda
Guerra Mundial, mas que, “por coincidência”, é ambientado em 1991 e tem um
protagonista com 60 anos de idade. Portanto, Yambo, nascido em 1931, vivera
parte de sua infância e adolescência durante o conflito e, precisando
lembrar-se de quem foi, nos fará, inevitavelmente, voltar no tempo junto com
ele e redescobrir essa triste parte de nossa História.
Antes do acidente, Yambo vivia em Milão com Paola,
sua esposa há mais de trinta anos. Tivera com ela duas filhas, Carla (que já lhe
dera dois netos, Alessandro e Luca) e Nicoletta (que por sua vez é mãe de Giangiacomo).
Possuía um antiquário de livros, o Studio Biblio, dedicado principalmente à
comercialização de livros raros e valiosíssimos. Por isso mesmo, vivia bem. Durante
os verões, a família deslocava-se para sua propriedade rural, em Solara, no Piemonte,
propriedade esta que fora herdada de seu avô. Fora em Solara que a família de
Yambo decidira passar os anos da guerra, para fugir dos iminentes bombardeios
que ameaçavam assolar Milão. Lá, em meio a pomares, colinas e penhascos, o
jovem Giambattista fora educado e vivera alguns dos momentos mais marcantes de
sua vida, cujas lembranças, ele descobre depois, o acompanhariam por décadas.
O fato é que agora nada disso fazia mais sentido
para Yambo. Em sua memória não restara uma mínima recordação dos nomes ou da
fisionomia dos familiares, dos espaços frequentados, de sua profissão. Mas não
se pense que ele se mantinha indiferente a tudo isso. Ao contrário, sua situação
o incomodava: “e dizer que há loucos que bebem ou usam drogas para esquecer,
ah, se eu pudesse esqueceria tudo, dizem. Só eu sei a verdade: esquecer é
atroz. Existem drogas para recordar?” (p. 59).
Em sua mente, apenas retalhos de memória coletiva. Trazia
um aglomerado de citações, figuras, acontecimentos, a grande maioria colhida nos
livros, mas nenhum verdadeiramente seu: “papel, papel, como todos os livros
desse apartamento, mais os do estúdio. Tenho uma memória de papel” (p. 75).
Dando-se conta de que foi através do papel que ele
construiu sua personalidade ao longo de toda a vida, Yambo parte para Solara,
por sugestão de Paola, onde encontraria muitos livros e recordações de sua
infância, nos sótãos da grande casa de campo que fora de seu avô. Chegado à
propriedade, que ficava por boa parte do ano dedicada aos cuidados unicamente
de Amalia, filha de antigos meeiros do avô de Yambo (e que com o tempo tinha se
tornado meio que a dona de fato do local), ele se lança numa jornada de meses
por entre caixas e baús, ressuscitando a cada dia uma parcela de lembranças que
iam lhe mostrando, aos poucos, em que contexto se criara. Eram fotografias,
álbuns, revistas em quadrinhos, livros, cadernos escolares, coleções as mais
variadas, objetos etc.
Por vezes, deparando-se com um livro, Yambo já sabia
adiantar seu enredo, já sabia que ilustrações encontraria no seu miolo. Muitas
daquelas obras e achados despertavam nele uma espécie de chama, algo que não
era propriamente uma lembrança, mas que o tocava de modo especial. Essas
misteriosas chamas iam revelando pouco a pouco o tipo de educação que recebera,
quais as relações familiares que tivera, que pontos da História marcaram de
forma mais especial a sua subjetividade.
Aos poucos, descortina-se diante de nossos olhos não
apenas a vida de Yambo, mas um pouco da vida do próprio Eco, que tivera
experiências parecidas com as do seu protagonista (e que, por isso mesmo, fazem
o livro ter um quê de autobiográfico). E mais: somos levados a também conhecer
um pouco da História da Itália, como que aquele país passou pela guerra, quais
as consequências do regime fascista para a vida dos cidadãos comuns, quais as
relações do país com os aliados e os inimigos.
É não apenas a história muito particular do
protagonista que vamos conhecendo, mas a História da própria Segunda Guerra
Mundial, narrada da forma mais peculiar possível: os documentos, cadernos e
livros de uma criança que vivera sob o regime fascista. Tomamos conhecimento da
censura, da manipulação de informações, da propaganda nacionalista e bélica, do
medo. Yambo/Eco não tratam de grandes batalhas e até mesmo os grandes nomes do
conflito não são apresentados com a pompa de um manual de História: tudo é
tratado através do cotidiano do cidadão comum, que tentava seguir sua vida dentro
do mínimo de normalidade possível e que só tomava conhecimento dos fatos a
partir do rádio, dos jornais, das revistas e dos livros (com toda a
parcialidade e manipulação típicas dos regimes totalitários):
Nas
caixas descobri também alguns números de A Defesa da Raça, uma revista
nascida em 1938, e não sei se meu avô jamais permitiu que me caísse nas mãos
(mas como se sabe, antes ou depois comecei a remexer em tudo). Havia fotos de
aborígenes comparadas às de um macaco, outras que mostravam o resultado
monstruoso do cruzamento entre uma chinesa e um europeu [...] quanto aos judeus
propriamente ditos, não havia o que escolher: era uma reunião de narizes
aduncos e barbas incultas, de bocas porcinas e sensuais com os dentes
salientes, de crânios braquicéfalos, zigomas marcados e olhos tristes de Judas
hierosolimitano, com ventres incontinentes de fiúzo de fraque, com a corrente
do relógio de sobre o colete, as mãos rapaces tesas sobre as riquezas dos povos
proletários (p. 189).
A grande citação se justifica pelo que traz de
evidências a respeito da propaganda fascista: exaltação da raça ariana em
detrimento dos demais povos, principalmente negros, judeus e asiáticos (exceto
japoneses, como se vê em outro ponto do livro, pelo motivo óbvio de que eram
aliados dos italianos na guerra). O romance é cheio de evidências que deixam
claro como a propaganda fascista buscava manter o povo otimista em relação à
pátria, idólatra em relação ao duce Mussolini e feroz em relação aos
inimigos.
Em sua busca pelo próprio passado, o protagonista acaba
nos apresentando também o passado de toda a humanidade e parece querer nos
advertir sobre a importância de não perder de vista a História, pois tal atitude
pode ter graves consequências. Isso porque, com o desenrolar do romance,
percebemos que o Yambo adulto passara sua vida dedicado a uma outra busca: buscara
Lila, uma jovem que conhecera quando ainda vivia em Solara, no início da
adolescência, e por quem se apaixonara. Sem conseguir declarar-se, o jovem Yambo
vira sua amada partir algum tempo depois para um lugar impreciso (talvez o Brasil)
e nunca mais tem notícias. Por décadas, tenta seguir as poucas pistas do
paradeiro da moça, até que um dia, descobre que sua busca já era inútil.
O fato é que, durante essas décadas de busca, Yambo
meio que renegara sua infância em Solara, parecia ir pouco e quase a contragosto
à propriedade, não lidava bem com as lembranças que lá deixara. Por conta de
uma frustração amorosa, renegara seu passado. E queda desmemoriado, sem
identidade. Ao esquecer sua história, Yambo torna-se frio, insensível. Em determinado
ponto do livro, Paola relembra para o marido alguns traços de sua personalidade:
Sempre
foi um misto de piedade e cinismo. Se havia uma condenação à morte em algum
lugar, assinava contra, mandava dinheiro para uma comunidade antidroga, mas se
lhe diziam que dez mil crianças foram mortas, digamos, em uma guerra tribal na
África, dava de ombros, como quem dissesse que o mundo não deu certo e não há
nada que se possa fazer (p. 69).
Yambo não deixara de fazer caridade, mas se mostra insensível
diante de uma grande tragédia. Não se pode deixar de perceber as semelhanças
entre o personagem e a própria humanidade, que há menos de cem anos da guerra
parece ter esquecido suas consequências e em muitos pontos parece não ter
aprendido suas lições. Lançando-se cega na perseguição de paixões avassaladoras
(o progresso, a tecnologia), mostra-se cada vez mais insensível e desumana.
Como pensar no futuro de uma humanidade que não lida bem com seu passado e
parece tão incoerente no seu presente?
Mas aí fica a cargo do leitor. O livro de Eco não
apresenta respostas nem mesmo para o problema criado em seu interior: a própria
história de Yambo não tem um fim, deixando os fatos suspensos. O resultado das
buscas às quais se lançara o protagonista só pode vir a longo prazo, a partir
da forma como ele lidará com tudo. O fato é que, aparentemente reconciliado com
seu passado, ele já pode começar a estabelecer alguma projeção para o futuro.
Ao longo do livro somos brindados com uma série de
descobertas, somos levados a, junto com Yambo, experimentar a sensação do novo,
ainda que um novo requentado, posto que esquecido ou ignorado. A misteriosa
chama da rainha Loana é um grande passeio, um canto de amor aos livros e à
História. Dessa caminhada certamente não saímos da mesma forma: como o
protagonista, nascemos de novo a cada capítulo, pois também não lembramos bem
quem somos e o que nos trouxe até aqui, mas vamos pouco a pouco reconhecendo a
importância dessa descoberta.
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