20/09/2022

UMA MEMÓRIA DE PAPEL: a misteriosa chama de Umberto Eco


A humanidade tem colecionado uma série de traumas ao longo de sua tortuosa história de glórias e desastres, de avanços e atrocidades. E em meio a esse (infelizmente) vasto elenco, a Segunda Guerra Mundial aparece, sem dúvidas, como um dos mais significativos traumas pelos quais passamos, deixando em nossa história uma ferida que insiste em não se curar. Foi com a Segunda Guerra que nos demos conta da real medida da crueldade humana. Foi com ela que aprendemos que a palavra “limite” é algo inalcançável para as mentes doentias.

 

É lógico que, por seu tamanho e repercussão, pelo fato de já contarmos na época com equipamentos que possibilitavam uma captura real e precisa dos acontecimentos, a Segunda Grande Guerra é também um dos capítulos da História humana que mais gerou produções, sejam elas de cunho informativo, sejam de cunho artístico. Filmes, seriados, poemas, romances, pinturas, peças de teatro, músicas, tudo o que o engenho humano é capaz de produzir já esteve, em um momento ou outro, em maior ou menor medida, voltado para o grande conflito.

 

Mas também não deixa de ser curioso: por mais que tratemos de tão trágico episódio a partir dos mais diversos pontos de vista, por mais que já tenhamos nos debruçado sobre seus fatos, personagens e datas, quer sob o ponto de vista do estudo e da informação, quer pelo simples interesse de fruir uma obra de arte, parecemos cada vez mais distantes das lições que a guerra nos deixou. Parece que o período de paz praticamente absoluta experimentado pelo ocidente desde fins do século XX e os vários avanços tecnológicos conquistados nas últimas décadas nos deram uma percepção equivocada sobre os rumos da humanidade. Entramos numa fase de grande otimismo, com muita esperança projetada no futuro... mas, e o passado? Lembrar de nossa história é fundamental não apenas para que entendamos os avanços que nos trouxeram até aqui, mas também para que tenhamos em mente os erros que não queremos nem devemos repetir.

 

E Umberto Eco nos convida (aliás, nos incita) a lembrar. Em A misteriosa chama da rainha Loana, romance ilustrado que traz a já conhecida marca de erudição que seu autor imprimiu em muitas de suas obras, Eco nos mostra a importância da memória e da compreensão do passado para que entendamos o presente e possamos imaginar um futuro (“só quando o passado nos vem à mente é que podemos antecipar o que virá”, p. 41).

 

O enredo do livro é relativamente simples: nele, somos apresentados a um abastado comerciante de livros que, após um acidente, perde a memória biográfica e precisa reaprender tudo a respeito dos sessenta anos que vivera até ali (“E o senhor, como se chama?” “Espere, está na ponta da língua”, p. 9). Giambattista Bodoni, o Yambo, precisa aprender a enfrentar o vazio que se coloca diante de si, pois a não ser aquilo que diz respeito à memória coletiva e, principalmente, aquilo lera nos livros (lembranças estas que não foram afetadas), todas as sensações, todos os espaços, todas as relações e acontecimentos que vivenciara em sua vida pessoal têm que ser redescobertos. Mas, por onde começar? O que é o passado para aquele que, dentro de sua compreensão atual, não o viveu?

 

São esses os problemas que Eco nos apresenta em seu romance, originalmente publicado em 2004 e cuja edição brasileira veio a público em 2005, pela editora Record. Todavia, o leitor pode se perguntar como um romance escrito no início do século XXI pode ter o seu quinhão de originalidade, uma vez que trata, entre outros temas, justamente da Segunda Guerra Mundial, que já rendeu tantas obras. E mais: como o tema da perda de memória, também já tão explorado, pode aparecer em tal romance sem que ele caia na mera exploração enfadonha de um terreno já tantas vezes visitado?

 

Eco nos coloca diante da resposta com uma habilidade incrível. O essencial era justamente unir as duas coisas. Temos aqui um livro que não parece, a princípio, ter o objetivo de tratar da Segunda Guerra Mundial, mas que, “por coincidência”, é ambientado em 1991 e tem um protagonista com 60 anos de idade. Portanto, Yambo, nascido em 1931, vivera parte de sua infância e adolescência durante o conflito e, precisando lembrar-se de quem foi, nos fará, inevitavelmente, voltar no tempo junto com ele e redescobrir essa triste parte de nossa História.

 

Antes do acidente, Yambo vivia em Milão com Paola, sua esposa há mais de trinta anos. Tivera com ela duas filhas, Carla (que já lhe dera dois netos, Alessandro e Luca) e Nicoletta (que por sua vez é mãe de Giangiacomo). Possuía um antiquário de livros, o Studio Biblio, dedicado principalmente à comercialização de livros raros e valiosíssimos. Por isso mesmo, vivia bem. Durante os verões, a família deslocava-se para sua propriedade rural, em Solara, no Piemonte, propriedade esta que fora herdada de seu avô. Fora em Solara que a família de Yambo decidira passar os anos da guerra, para fugir dos iminentes bombardeios que ameaçavam assolar Milão. Lá, em meio a pomares, colinas e penhascos, o jovem Giambattista fora educado e vivera alguns dos momentos mais marcantes de sua vida, cujas lembranças, ele descobre depois, o acompanhariam por décadas.

 

O fato é que agora nada disso fazia mais sentido para Yambo. Em sua memória não restara uma mínima recordação dos nomes ou da fisionomia dos familiares, dos espaços frequentados, de sua profissão. Mas não se pense que ele se mantinha indiferente a tudo isso. Ao contrário, sua situação o incomodava: “e dizer que há loucos que bebem ou usam drogas para esquecer, ah, se eu pudesse esqueceria tudo, dizem. Só eu sei a verdade: esquecer é atroz. Existem drogas para recordar?” (p. 59).

 

Em sua mente, apenas retalhos de memória coletiva. Trazia um aglomerado de citações, figuras, acontecimentos, a grande maioria colhida nos livros, mas nenhum verdadeiramente seu: “papel, papel, como todos os livros desse apartamento, mais os do estúdio. Tenho uma memória de papel” (p. 75).

 

Dando-se conta de que foi através do papel que ele construiu sua personalidade ao longo de toda a vida, Yambo parte para Solara, por sugestão de Paola, onde encontraria muitos livros e recordações de sua infância, nos sótãos da grande casa de campo que fora de seu avô. Chegado à propriedade, que ficava por boa parte do ano dedicada aos cuidados unicamente de Amalia, filha de antigos meeiros do avô de Yambo (e que com o tempo tinha se tornado meio que a dona de fato do local), ele se lança numa jornada de meses por entre caixas e baús, ressuscitando a cada dia uma parcela de lembranças que iam lhe mostrando, aos poucos, em que contexto se criara. Eram fotografias, álbuns, revistas em quadrinhos, livros, cadernos escolares, coleções as mais variadas, objetos etc.

 


Por vezes, deparando-se com um livro, Yambo já sabia adiantar seu enredo, já sabia que ilustrações encontraria no seu miolo. Muitas daquelas obras e achados despertavam nele uma espécie de chama, algo que não era propriamente uma lembrança, mas que o tocava de modo especial. Essas misteriosas chamas iam revelando pouco a pouco o tipo de educação que recebera, quais as relações familiares que tivera, que pontos da História marcaram de forma mais especial a sua subjetividade.

 

Aos poucos, descortina-se diante de nossos olhos não apenas a vida de Yambo, mas um pouco da vida do próprio Eco, que tivera experiências parecidas com as do seu protagonista (e que, por isso mesmo, fazem o livro ter um quê de autobiográfico). E mais: somos levados a também conhecer um pouco da História da Itália, como que aquele país passou pela guerra, quais as consequências do regime fascista para a vida dos cidadãos comuns, quais as relações do país com os aliados e os inimigos.

 

É não apenas a história muito particular do protagonista que vamos conhecendo, mas a História da própria Segunda Guerra Mundial, narrada da forma mais peculiar possível: os documentos, cadernos e livros de uma criança que vivera sob o regime fascista. Tomamos conhecimento da censura, da manipulação de informações, da propaganda nacionalista e bélica, do medo. Yambo/Eco não tratam de grandes batalhas e até mesmo os grandes nomes do conflito não são apresentados com a pompa de um manual de História: tudo é tratado através do cotidiano do cidadão comum, que tentava seguir sua vida dentro do mínimo de normalidade possível e que só tomava conhecimento dos fatos a partir do rádio, dos jornais, das revistas e dos livros (com toda a parcialidade e manipulação típicas dos regimes totalitários):

 

Nas caixas descobri também alguns números de A Defesa da Raça, uma revista nascida em 1938, e não sei se meu avô jamais permitiu que me caísse nas mãos (mas como se sabe, antes ou depois comecei a remexer em tudo). Havia fotos de aborígenes comparadas às de um macaco, outras que mostravam o resultado monstruoso do cruzamento entre uma chinesa e um europeu [...] quanto aos judeus propriamente ditos, não havia o que escolher: era uma reunião de narizes aduncos e barbas incultas, de bocas porcinas e sensuais com os dentes salientes, de crânios braquicéfalos, zigomas marcados e olhos tristes de Judas hierosolimitano, com ventres incontinentes de fiúzo de fraque, com a corrente do relógio de sobre o colete, as mãos rapaces tesas sobre as riquezas dos povos proletários (p. 189).

 

A grande citação se justifica pelo que traz de evidências a respeito da propaganda fascista: exaltação da raça ariana em detrimento dos demais povos, principalmente negros, judeus e asiáticos (exceto japoneses, como se vê em outro ponto do livro, pelo motivo óbvio de que eram aliados dos italianos na guerra). O romance é cheio de evidências que deixam claro como a propaganda fascista buscava manter o povo otimista em relação à pátria, idólatra em relação ao duce Mussolini e feroz em relação aos inimigos.

 

Em sua busca pelo próprio passado, o protagonista acaba nos apresentando também o passado de toda a humanidade e parece querer nos advertir sobre a importância de não perder de vista a História, pois tal atitude pode ter graves consequências. Isso porque, com o desenrolar do romance, percebemos que o Yambo adulto passara sua vida dedicado a uma outra busca: buscara Lila, uma jovem que conhecera quando ainda vivia em Solara, no início da adolescência, e por quem se apaixonara. Sem conseguir declarar-se, o jovem Yambo vira sua amada partir algum tempo depois para um lugar impreciso (talvez o Brasil) e nunca mais tem notícias. Por décadas, tenta seguir as poucas pistas do paradeiro da moça, até que um dia, descobre que sua busca já era inútil.

 

O fato é que, durante essas décadas de busca, Yambo meio que renegara sua infância em Solara, parecia ir pouco e quase a contragosto à propriedade, não lidava bem com as lembranças que lá deixara. Por conta de uma frustração amorosa, renegara seu passado. E queda desmemoriado, sem identidade. Ao esquecer sua história, Yambo torna-se frio, insensível. Em determinado ponto do livro, Paola relembra para o marido alguns traços de sua personalidade:

 

Sempre foi um misto de piedade e cinismo. Se havia uma condenação à morte em algum lugar, assinava contra, mandava dinheiro para uma comunidade antidroga, mas se lhe diziam que dez mil crianças foram mortas, digamos, em uma guerra tribal na África, dava de ombros, como quem dissesse que o mundo não deu certo e não há nada que se possa fazer (p. 69).

 

Yambo não deixara de fazer caridade, mas se mostra insensível diante de uma grande tragédia. Não se pode deixar de perceber as semelhanças entre o personagem e a própria humanidade, que há menos de cem anos da guerra parece ter esquecido suas consequências e em muitos pontos parece não ter aprendido suas lições. Lançando-se cega na perseguição de paixões avassaladoras (o progresso, a tecnologia), mostra-se cada vez mais insensível e desumana. Como pensar no futuro de uma humanidade que não lida bem com seu passado e parece tão incoerente no seu presente?

 

Mas aí fica a cargo do leitor. O livro de Eco não apresenta respostas nem mesmo para o problema criado em seu interior: a própria história de Yambo não tem um fim, deixando os fatos suspensos. O resultado das buscas às quais se lançara o protagonista só pode vir a longo prazo, a partir da forma como ele lidará com tudo. O fato é que, aparentemente reconciliado com seu passado, ele já pode começar a estabelecer alguma projeção para o futuro.

 

Ao longo do livro somos brindados com uma série de descobertas, somos levados a, junto com Yambo, experimentar a sensação do novo, ainda que um novo requentado, posto que esquecido ou ignorado. A misteriosa chama da rainha Loana é um grande passeio, um canto de amor aos livros e à História. Dessa caminhada certamente não saímos da mesma forma: como o protagonista, nascemos de novo a cada capítulo, pois também não lembramos bem quem somos e o que nos trouxe até aqui, mas vamos pouco a pouco reconhecendo a importância dessa descoberta.

 

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Professor Weslley Barbosa