POESIA E GRITO


POESIA E GRITO*


Adaptando aquilo que nos disse Cecília Meireles, podemos afirmar que, embora transfiguradora, a poesia, em sua essência é grito. Salta aos olhos a sua indiscutível característica de meio pelo qual o ser humano tenta lançar-se contra a rigidez, o mecanicismo, a ordem estabelecida e – expandindo sua subjetividade ao nível do palpável, do perceptível pela sociedade – busca chamar a atenção para si, fazer-se observar, ser notado. 

Ora, muitas vezes sufocado por uma sociedade objetiva e assustadoramente dinâmica, o ser humano parece encontrar apenas na arte os meios pelos quais buscará lançar o seu grito de liberdade. Outras vezes, o grito, embora incompreendido, é uma tentativa de romper a solidão, um encontrar-se consigo mesmo como forma de sentir-se menos isolado.

Utilizando-se da linguagem como forma de expressão, a literatura coloca o ser humano diante de uma de suas maiores frustrações: a incapacidade de expressar por palavras tudo aquilo que está sentindo. A respeito disso, Augusto dos Anjos já versava, quando em “A Ideia”, lembrou a luta tão grandiosa travada pelo ser humano (onde o seu adversário é sua própria intelectualidade, ao mesmo tempo imensa e limitada), luta em que a ideia tentando transpor as “incógnitas criptas” do nosso “encéfalo absconso”, acaba por fim esbarrando no “molambo da língua paralítica”.

Na poesia propriamente dita, o grito abafado enclausura não apenas o olhar do artista, mas seu próprio “eu”. Portadora, em sua essência, de uma indiscutível subjetividade, a poesia é a união de dois planos, sendo ao mesmo tempo o ponto alto do confronto do ser humano com a sociedade e uma forma de autoconhecimento. Belíssimas são as palavras do poeta e professor Antonio Morais de Carvalho, meu mestre e amigo pessoal, quando nos diz: “Há uma voz que irrompe na noite / e corta todo o ar parado e frio / e move cada átomo, o ser aviva / e oferece o engano, o truque-doce”. Incrível o poder da poesia, anunciado nestes versos. Pondo em crise toda a ordem estabelecida, a voz do poeta rompe a noite (silenciosa por essência), altera o átomo, engana... É truque.


Chega mesmo a ser uma artimanha do artista, seu “jeitinho” de remoldar o mundo ao seu modo. Todavia, a sociedade resiste, a ordem resiste. E, inevitavelmente, o poeta é um dos mecanismos dessa sociedade, ele a integra. Assim, a tentativa de ruptura é ao mesmo tempo alento e tormento. Ao passo que revigora – posto que é um trabalho de autoconhecimento –, incomoda, amargura, visto que é fruto de intensa crise. 

O verdadeiro poeta, no entanto, nunca preferirá abandonar seu labor para fugir do conflito. Sérgio de Castro Pinto é bem incisivo quando compara a escrita com um “suicídio branco”, e o não escrever com um “suicídio EM branco”, “um consumar-se sem metáforas”. Se a vida prática, muito afeita aos resultados, à produção, parece querer convencer as pessoas de que expressar-se pode ser uma atividade inútil, o não expressar-se é, para o artista, a pior das mortes, posto que morre em silêncio, quando mais precisa gritar. 

Ser social, mas relegado à solidão por suas crises existenciais, por seu olhar transfigurador, por sua relutância em pensar objetivamente, o poeta parece, no fim das contas, gritar para dentro si, enquanto contempla a indiferente sociedade, que é incapaz de compreendê-lo. Os versos do professor e poeta Hildeberto Barbosa Filho, parecem ilustrar muito bem essa situação: “Poeta, estou sozinho / a contemplar o relógio / dos abismos, os subúrbios / da beleza”. 

Dói a luta diária do artista neste meio. Armado com a linguagem, o poeta escreve, canta, grita... Não sabe ele que a arma é traiçoeira. E, novamente, recorro a um trecho do professor Hildeberto, um dos muitos que tenta com seus gritos romper a surdez da cidade e se fazer ouvir, num poema denunciador de um eu lírico quase agonizante: “Logo de manhã / um poema me atingiu / bem no meio do coração: // Existir é sangrar”.


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* Texto pronunciado no dia 18 de setembro de 2013, no Teatro Paulo Pontes, Campina Grande-PB, por ocasião da mesa redonda intitulada "Poesia: grito e silêncio na surdez da cidade", organizada pelo PEN Clube do Brasil, 1ª seccional da Paraíba, Campina Grande.