ENTRE LIVROS: TRAVESSIAS



ENTRE LIVROS: TRAVESSIAS


Analisando minha trajetória com os livros, dou-me conta de que dois momentos, talvez possa mesmo dizer duas epifanias, tiveram uma significação muito especial para o início disso tudo, dessa avassaladora paixão. O primeiro deles se deu há mais de 20 anos. E isso é interessante, porque, falando em sentido estrito, eu não tive uma “infância literária”. Não li, quando criança, as obras de Monteiro Lobato ou Ruth Rocha, não conheci algumas coleções famosas, como a Vagalume, nem mesmo tive acesso a livros com contos de fadas. Essa ausência do contato com livros acabou fazendo com que, no início da adolescência, eu me convencesse de que livros não eram coisas interessantes e a literatura me parecia uma realidade tão distante, que se alguém dissesse para aquele Weslley que sua vida futura seria totalmente relacionada com a palavra impressa, eu certamente duvidaria.

O mais curioso quando me volto para aquela época da minha vida, é lembrar que eu costumava mesmo dizer aos quatro cantos que “aquilo”, os livros, não eram para mim, que eu não gostava de ler (como alguém que nunca provou de certa comida e insiste em dizer que não gosta dela). Foi assim até uma tarde de domingo, em setembro de 2004 – eu tinha, então, 16 anos. Naquela ocasião, fora visitar a minha avó paterna, como era costume nos finais de semana. A certa altura, vi, sobre uma mesa num canto, junto do material escolar da minha prima, um livro de capa vermelha, com ilustrações estranhas e o título: Os miseráveis. Lembro que pensei que aquilo deveria ser bem chato, mas fiquei curioso para saber quem eram, afinal de contas, esses tais miseráveis. Decidi folhear o livro, num laivo de curiosidade que eu ainda não sabia, mas seria um dos atos mais significativos que eu praticaria na minha vida. O fato é que a história me pegou de tal forma que em poucos minutos eu já estava sentado, lendo a obra avidamente. 

Li o livro inteiro, em poucas horas. Tratava-se da adaptação de Walcyr Carrasco da monumental obra de Victor Hugo. Saí da leitura extasiado, emocionado e envolvido com a história de Jean Valjean, de Fantine, de Cozette... odiando, como não poderia deixar de ser, o inspetor Javert. Foi extremamente curioso descobrir que ler era bom, que nos fazia viajar para épocas, lugares e experiências que eram muito diferentes da nossa. Naquele mesmo dia, decidi que, embora ainda não soubesse bem como, os livros passariam a fazer parte de toda a minha vida. Seriam meu objeto de lazer e de trabalho, uma paixão para a vida inteira. 

Na segunda-feira, tratei de ir o mais rápido que pude à biblioteca da escola, em busca de uma nova leitura. Eram muitas opções e eu estava um pouco perdido, então investi num nome que já tinha ouvido falar: Jorge Amado. Peguei para ler Mar Morto e foi outra paixão. Nas semanas e meses seguintes voltei muitas vezes à biblioteca, para pegar livros de José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos, José Lins do Rego etc. Eu estava no segundo ano do Ensino Médio e, quanto mais eu conhecia a literatura, mais me convencia de que faria dos livros o meu objeto de trabalho no futuro. E decidi mais: eu não apenas iria trabalhar com os livros alheios. Eu iria pesquisar, dedicar-me ao máximo e não descansaria enquanto não publicasse, eu mesmo, os meus livros. Queria deixar uma contribuição, ainda que modesta, para a grande biblioteca humana. 

Foi tudo muito rápido, muito intenso. Em menos de seis meses eu saí da completa indiferença em relação aos livros para chegar a um estado de paixão avassaladora e definitiva. Daí em diante, veio o vestibular; no ano seguinte, o ingresso na universidade, as leituras teóricas... e a certeza cada vez maior de que eu fizera a escolha certa.



Foi então que veio a segunda epifania. Trata-se da descoberta da literatura paraibana. Como foi bom, após conhecer outros lugares e modos de vida, ficar cara a cara com livros que falavam de algo que fazia parte do meu mundo. Não era só a França, a Inglaterra, ou mesmo o Rio de Janeiro ou a Bahia. A Paraíba também podia virar literatura. Nosso sertão estava ali, nas obras de Ariano Suassuna, de Eilzo Matos. Nossa capital, Zona da Mata e Brejo estavam nos textos de José Américo, de José Lins do Rego, nos poemas de Políbio Alves... E Campina Grande, lá estava ela também, nos romances de Ivan Bichara e Fernando Silveira e nos poemas de Ronaldo Cunha Lima. A literatura paraibana foi, para mim, a possibilidade de retornar àquilo que era meu e de me orgulhar da minha região, da cultura do meu povo. E logo virou também um importante e querido objeto de estudo. 

Do local ao geral, os livros me acompanham há 21 anos, neste instigante périplo sem fim. Porém, nem sempre a relação com as obras é só amor. Muitas vezes há batalhas, há ódio, há tristeza, porque elas, assim como seus autores, carregam as multiplicidades de uma humanidade ora bela, ora doentia. Seja aqui, na nossa casa, ou lá longe, na Ásia, na Rússia, há sempre um motivo para sorrir e para chorar. É como se o mundo fosse tão pequeno que coubesse numa biblioteca, mas ela fosse tão grande a ponto de causar revoluções no coração de um homem. É uma equação que não fecha, nem precisa. A cada um de nós, cabe apenas se lançar nessa instigante viagem, na qual eu sigo levando na mente as palavras do poeta paraibano José Antonio Assunção: “aos olhos de um homem em crise / toda geografia é o mesmo acidente”.